História Social da Propriedade da Terra

1–Justificativa e objetivos:
Este curso tem por objetivo geral questionar alguns modelos de desenvolvimento
histórico aparentemente neutros, mas contaminados de preconceitos.Especificamente,
dialogaremos com o direito agrário e com a história agrária para questionar a idéia
amplamente disseminada de que a propriedade privada da terra é algo absoluto, a-histórico e
símbolo per se da evolução e do progresso. Por isso, começaremos por evitar o uso do termo
propriedade como um referente ideal, fetiche, abstrato, e preferiremos o uso da expressão
direitos de propriedade, que suscita a questão sócio-histórica de quem os possui e recorda-nos
do caráter convencional, plural, aberto e mutante desses direitos.
Aceitando as bases do direito e da ideologia liberais, muitos historiadores e juristas
agrários partem do modelo atual de propriedade da terra para analisar direitos de propriedade
de outras épocas, e com isso incorrem em alguns lugares comuns. Primeiro, rotulam como
encargos, ou como estorvos, os elementos que impediam o gozo absoluto desse bem em
tempos passados. Segundo, negam a condição de direitos de propriedade àqueles que
desapareceram, sejam os senhoriais ou os comunais, no século XIX. Terceiro, encaram que a
propriedade privada da terra, pré-determinada ao sucesso histórico da evolução ‘normal’ da
humanidade, mesmo assim deve ser protegida pelo Estado. Quarto, não se dão conta de que a
proteção de alguns direitos concretos de propriedade significou a desproteção de outros, num
longo processo histórico que envolveu conflitos entre agentes e interesses de classe distintos.
Por último, reforçam a idéia de que a propriedade é definida de forma exclusiva apenas pelas
leis e códigos, e que os Estados Nacionais são os únicos responsáveis por seu sucesso ou
fracasso. Em síntese, imbuídos da idéia de superioridade da propriedade privada moderna,
não conseguem analisar com neutralidade o processo de implantação histórica de novos
direitos de propriedade nem a destruição de antigas formas de acesso e gozo de recursos
naturais.

Nesse curso gostaríamos de fornecer aos estudantes algumas ferramentas de análise,
dados concretos, resultados de pesquisas recentes ou teorias alternativas para que possam
perceber, primeiro, que as condições de realização da propriedade são o resultado de
múltiplas facetas da atividade humana, não somente da decisão dos legisladores. Devemos
ultrapassar o texto da lei para chegar às relações sociais que conformam os direitos de
propriedade, pois, mesmo que não mudem os nomes das coisas e as leis, isso não significa que
não haja transformação nas concepções das coisas e no modo de propor e aplicar as leis.
Assim, não devem nos interessar somente as condições legais, ou nominais, da propriedade,
mas o conjunto de elementos relacionados com as formas diárias de se chegar aos recursos, as
práticas diárias de acesso à terra, a distribuição social do produto e das rendas dela advindos,
elementos que podem condicionar e ser condicionados por diferentes formas de desfrutar os
chamados direitos de propriedade.
Além disso, dado que não se assume nas pesquisas históricas o caráter plural e
mutante dos direitos de propriedade, gostaríamos de reforçar a diversidade dos direitos e
práticas de uso e acesso à terra, isto é, as diferentes formas de ser proprietário que intervém e
atuam na sociedade. Encaramos que esses direitos estão condicionados aos interesses
concretos de grupos que atuam em sociedade a partir de estratégias próprias, a quem
chamaremos de ‘proprietários práticos’. Assim se pode compreender porque um governo
decide proteger certos direitos de propriedade em um determinado momento, e porque leis
supostamente neutras foram efetivamente condicionadas pelo embate concreto entre direitos
de propriedade e ‘proprietários práticos’ conflitantes. A tarefa do historiador dos direitos de
propriedade seria, a nosso ver, se perguntar, para cada contexto, que direitos se exerciam, que
direitos eram contestados, que direitos eram reivindicados, e por quem.
Atingir esse objetivo demanda, antes de tudo, algum conhecimento de base sobre a
construção histórica da idéia de propriedade da terra. Este conceito está geralmente calcado
em interpretações diversas do direito romano a partir, sobretudo, do jusnaturalismo do século
XVIII. No caso da história do Brasil, a pergunta certamente nos remeterá a uma análise mais
aprofundada da forma que se pensaram, se efetivaram e como conflitaram diferentes direitos
de propriedade, levando em consideração os meandros do processo de colonização, da
implementação do direito costumeiro português—as Ordenações—e, no século XIX, da
construção do novo direito agrário nacional—a Lei de Terras—cominspiração nos códigos
liberais europeus.Nesse momento, tentaremos ultrapassar uma exegese circular do texto legal
para levar em consideração resultados de pesquisa que mostram a implementação
contraditória da propriedade privada da terra no seio de uma sociedade estratificada, onde a
terra não era uma mercadoria e a propriedade não era absoluta.

Por último, para não deixar de lado nossa crença em uma história-problema, que
ilumine questões candentes do nosso presente, serão analisadas algumas novidades do
‘moderno’ direito agrário brasileiro que permitem sua manipulação por proprietários
práticosbastante atuais. Veremos como grileiros e incorporadoras imobiliárias chegam à
legalização do ilegal pelo registro cartorial de imóveis; e, por outro lado,como se construíram
os conceitos de “função social da propriedade”, “reserva extrativista” e “propriedade coletiva
inalienável”, conflitantes com as premissas da propriedade privada absoluta, mas que
permitiram novos direitosde propriedade a grupos que foram historicamente excluídos deles,
como nações nativas, seringueiros e remanescentes de quilombos.

2 – Avaliação:
Três trabalhos “curtos” escritos e individuais e participação continuada na discussão dos
textos.3
3 – Sobre a bibliografia do curso:
 As referências bibliográficas marcadas com *são de leitura obrigatória para a sessão.
Outras obras citadas na bibliografia são fortemente recomendadas para a melhor
compreensão do tema.
 Por motivos ecológicos, não é necessário trazer os textos impressos para sala de aula,
caso tenham sido lidos em livros emprestados ou em arquivos eletrônicos, mas se
incentiva fortemente a participação oralcom base no aporte de anotações individuais,
fichamentos, comentários, críticas ou dúvidas advindas das leituras.
 As referências bibliográficas seguidas de PDF serão disponibilizadas pela professora em
arquivo eletrônico, no início do curso. Incentivar-se-á também que os alunos comecem
a abastecer sua própria base bibliográfica eletrônica.